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Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia

Foto do escritorÉrico Perrela

Onde se discute o futuro da biotecnologia: Um encontro com o aparato de política externa britânico

Atualizado: 17 de out. de 2023


Esse texto é uma breve descrição antropológica de um evento ocorrido em Julho de 2023 organizado pelo Ministério de Relações Exteriores britânico em conjunto com uma fundação internacional dedicada à biologia sintética. Neste workshop, realizado numa mansão vitoriana, discutiu-se com um público relativamente diverso sobre a utilização de biologia sintética para além do contexto laboratorial. Mostro como um workshop sobre a regulação de uma ciência emergente pode servir como uma exibição franca de soft power - no caso, inglês.



Viagens inesperadas


No mês de Junho do ano passado [2022], minha companheira Clarissa - que durante seu mestrado acompanhou um grupo de estudantes da Universidade de São Paulo, incluindo eu mesmo, interessados na área de biologia sintética - foi selecionada como fellow researcher na Fundação iGem (International Genetically Engineered Machines), uma das principais fundações dedicadas ao tema biologia sintética no mundo. A Fundação iGEM organiza uma competição estudantil anual em que cada um dos aproximadamente 400 times de todo o mundo (menos dos países pobres) realiza um projeto criando um organismo geneticamente modificado que possa solucionar ou ajudar em algum problema de escolha dos times. A fundação foi criada como um spin-off de um departamento do MIT chamado Registry of Standard Biological Parts e durante muito tempo a fundação e a competição foram sediados no próprio MIT, mudando-se para Paris em 2019. Toda a competição iGEM gira em torno da criação e a utilização de “partes biológicas padrão” ou biobricks, sequências genéticas funcionais artificialmente produzidas capazes de serem “integradas” em qualquer organismo vivo. Discussões acalentadíssimas sobre ética são frequentes no campo da biologia sintética, já que este se estrutura em torno de possibilidades de modificações de corpos de uma variedade de organismos.

A partir desse novo emprego da Clarissa, eu a acompanho em três eventos realizados na Europa relacionados à biologia sintética e com alta participação de funcionários do aparato de política externa estadunidense e inglês. Em Julho de 2022 vamos juntos à Inglaterra; Em Outubro, encontro Clarissa por um mês em Paris, onde ela sofreu pelos dois meses anteriores. Em Abril de 2023 sou selecionado para participar do Comitê de Biossegurança da Fundação iGEM, onde ajudo a avaliar as práticas de biossegurança dos times e da organização. Durante esse tempo, passamos por várias experiências políticas únicas em eventos e reuniões organizados pela fundação. A história a que se refere esse ensaio é sobre um desses encontros tecno-políticos tão abertos e absurdos que eu me sinto obrigado a no mínimo relatá-los. Esse texto descreve minha perspectiva sobre uma experiência específica - um workshop sobre biossegurança - que vivi participando da "comunidade" e dos eventos iGem. Foi incrível me perceber repentinamente neste ambiente privilegiado para observar como ao mesmo tempo política e a ciência são feitas, de uma maneira tão descarada que os eventos pareciam se desenrolar como no roteiro de uma ficção científica distópica. Como estudante de STS - Science, Technology and Society (ou CTS - Ciência, Tecnologia e Sociedade), senti em meu corpo a “ciência em ação”. o presente texto trata de relatar essas sensações. Através da descrição e análise de eventos do tipo, é possível observar quais dinâmicas e dimensões sociais se mostram envolvidas nesses eventos-rede.


Wiston House

Em Julho, Clarissa me convidou para participar de um workshop a respeito do uso responsável de biologia sintética fora do contexto puramente laboratorial. Recebi o convite oficial e fiquei sabendo que o governo britânico pagaria pela participação no workshop, que aconteceria em uma mansão vitoriana de nome Wiston House em um terreno de 2.400 hectares chamado Wilton Park em West Sussex.

Chegando ao Reino Unido - após longo interrogatório na imigração - sou levado à uma antiga propriedade rural próxima à pequena cidade de Steyning, a cerca de uma hora e meia de distância de Londres. Chego durante um frio fim de tarde e a mansão e os campos ao seu redor estão parcialmente encobertos por névoa. No dia seguinte, andando pelo local, descubro que Wilton Park tem um time de jardineiros e de zeladores que cuidam meticulosamente dos imensos e belos jardins, estufas e bosques que compõem a propriedade.





Wiston House (Fonte: acervo próprio)



Passeio nos jardins de Wilton Park. (Fonte: acervo próprio)


O interior da mansão é mais impressionante ainda do que o exterior e me senti num filme imaginário de Visconti em que os personagens principais seriam membros problemáticos de alguma poderosa família britânica ao mesmo tempo burguesa, aristocrata e colonizadora: um Os Deuses Malditos britânico. O fundador da Rodésia e grande inglês Cecil Rhodes ou outro grandessíssimo inglês como o magnata da indústria farmacêutica Henry Wellcome poderiam viver ali, isolados do mundo porém dominando-o, fumando um charuto em seu jardim de inverno com biblioteca anexa e exército de mordomos. Nas estantes da biblioteca/jardim de inverno, adornadas por quadros de homens importantes do passado em trajes militares e estátuas de deuses gregos, os livros são categorizados principalmente em dois temas: a guerra e a descrição de culturas e sociedades diferentes da britânica. A propriedade ainda pertence a uma família monárquica britânica e é alugada pelo governo britânico. Hoje a mansão é utilizada pelo Ministério de Defesa e pelo Ministério do Exterior e do Commonwealth (esse ministério ainda hoje cuida administrativamente também dos territórios ultramarinos ingleses) para a organização de rodadas de discussões internacionais. Nesse local majestoso os convidados do ex-império britânico refletirão sobre questões de imensa importância e impacto para a humanidade. Quinze dias antes do evento que comparecemos, a mansão fora usada para as negociações de paz na Líbia, recebendo ministros de vários governos do mundo e suas entourages.

Participando conosco estavam jovens pesquisadores do Paquistão, Holanda, Sri Lanka, China, México e Brasil; burocratas de órgãos reguladores como o Food and Drugs Administration dos EUA, dos Ministério de Ciência e Tecnologia e da Defesa britânicos; da comissão de biossegurança do Quênia; representantes de algumas universidades como Harvard, o SPRU da Universidade de Sussex e a Universidade de Kent; representantes sindicais estadunidenses; por fim, também participavam alguns diretores e o presidente da Fundação iGem, totalizando cerca de 30 participantes. Durante todo o evento fomos servidos por uma equipe de garçons, cozinheiros e governantas que deveria totalizar mais pelo menos 10 empregados. Os participantes foram convidados tanto pela Fundação iGEM como pelo Ministério das Relações Exteriores britânico.


As discussões


Durante três dias discutimos, escrevemos em post-its e apresentamos uns para os outros nossos esforços e visões sobre a prática da biossegurança e sobre a utilização de biotecnologia avançada em ambientes abertos. Uma organização não governamental em sua apresentação disse ter criado um modelo matemático descritivo perfeito que captava a essência da confiança e que a biotecnologia deveria se orientar seguindo esse "framework de confiança". Uma reguladora estadunidense argumentou sobre como nos EUA a questão da biossegurança estava muito sob controle e que uma leve desregulamentação poderia fazer bem. Um representante de uma fundação financiada por bilionários apresentou remotamente sobre seu projeto conservacionista para salvar os furões de pé preto ameaçados de extinção (num plano com argumentos esquisitos que beiram o ecofascismo). Um projeto liderado por europeus para a eliminação da malária na África através da disseminação de mosquitos geneticamente modificados foi uma das apresentações centrais. Um diretor do iGem sugeriu que uma solução criativa para o aquecimento global seria a substituição de parte substancial do mato e grama do mundo por equivalentes sintéticos capazes de fixar quantidades extraordinárias de CO2.

A tecnologia de gene drives (uma forma de obrigar geneticamente um ser a herdar determinadas características), assim como formas de se detectar e monitorar populações geneticamente modificadas de seres vivos, foram algumas das estrelas do evento, já que muitas das pessoas se referiram a essas coisas durante suas apresentações e/ou intervenções. Um clima de triunfo perpassava praticamente todas as falas ligadas aos órgãos reguladores, às universidades e ao iGem. Para a maioria dos participantes, a questão da biossegurança já estava resolvida, bastava que a população entendesse mais sobre o tema que ela concordaria com os cientistas, com os governos e suas comissões de biossegurança. Havia um consenso sendo expresso de que os procedimentos estabelecidos por esses órgãos regulatórios era mais do que o suficiente para garantir de fato a biossegurança de produtos biotecnológicos.

Na minha apresentação contei a história da nossa comissão de biossegurança (criada às pressas e sob ameaça da Monsanto para liberar os transgênicos no Brasil, já que os produtores agrícolas brasileiros estavam contrabandeando e reproduzindo ilegalmente as sementes Monsanto provenientes da Argentina onde a tecnologia Round Up já era legalizada) e contei a história e as consequências (nenhuma) dos desastres de Mariana e Brumadinho. Questionei se a atividade de mineração era biossegura e se eles achavam que as sementes Monsanto (que são literalmente feitas para serem vendidas em conjunto com um agrotóxico muito danoso ambientalmente e socialmente, o glifosato) eram de fato biosseguras sob o ponto de vista da totalidade da situação. Após a apresentação, os representantes sindicais e professores de humanas vieram falar comigo e dar seus cartões. Os membros de governos passaram a me evitar até o final do evento.


Conclusão


Com base nesta experiência pessoal e nas discussões da área de estudos sociais da ciência e tecnologia (ESCT), algumas coisas me chamam muito a atenção como pontos importantes sobre como funcionam materialmente as discussões internacionais sobre temas relacionados à regulamentação e ao uso de biotecnologias, principalmente as ligadas com a engenharia genética:


  • A MANSÃO VITORIANA COMO LOCAL DE PODER


A estrutura física do encontro é com toda a certeza pensada para impressionar e para projetar a ideia de grandeza e o poder do aparato britânico de governo. Como o trabalho “Vigiar e Punir” de Foucault ou o “Couro Imperial” de Anne McClintock indicam, a arquitetura e a organização física das atividades sociais se relacionam diretamente com os modos de controle utilizados pelas sociedades para garantirem a estabilidade de seus status-quo políticos e sociais. Mesmo estando acostumado com o Vale do Silício, com Londres ou Nova Iorque, Winston House é impressionante: estar lá traz a sensação física de estar no centro do poder. O governo britânico ao organizar o workshop, inclusive financiando boa parte da sua realização, tenta projetar poder e importância na discussão sobre o uso e a regulamentação de biotecnologias e esse é o objetivo declarado de Wilton Park.



  • O INTERESSE DOS APARATOS DE POLÍTICA EXTERNA NO TEMA BIOLOGIA SINTÉTICA


O governo britânico portanto - pelo menos o seu braço de política externa - tem claramente interesse em manter-se inteirado (potencialmente conduzindo) as discussões sobre regulamentação e o uso da biologia sintética. Documentos públicos de Wilton Park (como relatórios direcionados ao governo para a justificativa da operação do local pela agência de mesmo nome, ligada ao Foreign and Commonwealth Office) descrevem a propriedade e seu time executivo como “parte pequena porém efetiva do aparato de soft power ingles” e como “uma instituição capaz de entregar resultados concretos para o governo britânico em termos da agenda global britânica”. A biologia sintética se insere em uma gama mais ampla de interesses do Foreign and Commonwealth Office: os principais temas tratados em Wilton Park em 2022 são relacionados à “desenvolvimento sustentável e meio ambiente”, com 57 eventos em 2022, seguido de “defesa e segurança”, com 22 eventos; “saúde global” com 12; “prevenção e resolução de conflitos” com 11; “instituições multilaterais” com 11; “direitos humanos e boa governança” com 6 e “economia global” com 5. O evento que comparecemos figura sob o tema “defence and security”, dada uma interpretação aceita corrente que a utilização de biologia sintética pode resultar em grandes riscos ambientais , militares e de saúde. Interessante notar que “direitos humanos e boa governança” e “economia global” são os temas que recebem menos eventos no local.


  • A NECESSIDADE DA “DIVERSIDADE” NAS DISCUSSÕES E A NATUREZA ESSENCIALMENTE CAPITALISTA DAS DISCUSSÕES


Todos os documentos consultados sobre Wilton Park, além da própria experiência relatada indicam que a equipe executiva responsável pela propriedade/agência valoriza muito a diversidade de opiniões como um dos pilares das discussões realizadas no local. Nos documentos constam diversos gráficos sobre a participação de mulheres, de cidadãos de outros países, de diversos setores da indústria e da sociedade civil. No entanto no encontro em que participei fica evidente que a diversidade é apenas pró-forma pois não havia por exemplo nenhuma voz anticapitalista - além da minha e de Clarissa - participando do evento e eu duvido imensamente que em outros eventos seja diferente. Como éramos minoria absoluta, pareciamos malucos ou radicais. Pelo contrário, todos os presentes pareciam concordar que os governos e empresas estão num caminho positivo e de entendimento sobre a utilização dessas novas tecnologias biológicas. As empresas e os produtos foram as únicas soluções possíveis mencionadas por todos os participantes para qualquer problema. Havia na reunião algo como uma “diversidade manufaturada” - brincando com o termo “consenso manufaturado” de Noam Chomsky, projetada para captar apenas os dissensos mínimos contidos dentro de uma barreira essencialmente ideológica capitalista. A própria forma de discutir - com várias sessões de discussões temáticas curtas e apressadas de 90 minutos entrecortadas por breaks de 15 minutos, seguindo pelo dia inteiro - não encoraja o pensamento complexo e quase todas as discussões pendiam para a simplicidade e o senso comum, orbitando uma ideia difusa de capitalismo sustentável e responsável.



Esses são alguns dos insights que tive durante essa situação. Eles indicam um esforço coeso do aparato de política externa britânico a fins de influenciar as discussões sobre a utilização de biotecnologias avançadas. Um dos meios pelo qual o governo britânico faz isso é com uma projeção de poder arquitetonicamente causada pela organização de eventos em Wilton Park. Outro método é a “manufatura de diversidade” que pretende mostrar publicamente o quão diversas estão sendo as discussões, com no entanto todas as sessões sendo supérfluas e mesmo assim dirigidas com mão de ferro pela equipe de Wilton Park, que também atua na seleção dos convidados uniformizando as possibilidades de participantes e criando um viés pŕo capitalista nas discussões.


Don't be told what you want to want to

And don't be told what you want to need

There's no future, no future

No future for you


Sex Pistols, God save the Queen








Posteres de uma campanha do exército inglês espalhados por Londres durante minha visita à Inglaterra para o workshop de biossegurança em Winston House. A campanha opõe face a face uma criatura que parece sintética com soldados humanos, cada peça exibe uma das frases: “Nothing can think like a soldier can think”; “Nothing can feel what a soldier can feel” e “Nothing can do what a soldier can do” (Fonte: acervo próprio)






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Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, 2023. 

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