Texto original de Tommaso Venturini e Anders Kristian Munk, traduzido para o blog do GEICT por Jéssica Ferreira Cardoso
NOTA DA TRADUTORA: No arcabouço teórico-metodológico dos estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) a Teoria Ator-Rede (TAR) [ANT ou Actor-Network Theory em inglês] é uma alternativa bem estabelecida, sendo a análise ou mapeamento de controvérsias uma das suas formas de produzir reflexões. No entanto, colocar em prática seus princípios pode não ser tarefa tão simples, especialmente no caso de pesquisadores e pesquisadoras iniciantes ainda não habituados aos seus recursos e conceitos.
Ao ingressar no mestrado em Política Científica e Tecnológica em 2020, este era o meu caso. Com formação e experiência em áreas muito distintas, na Engenharia Ambiental e nas Ciências Sociais, eu buscava opções metodológicas que me permitissem articular essas duas áreas de conhecimento com os meus interesses de pesquisa. Diante disso, a TAR logo me capturou, em particular por um de seus princípios, o de considerar simetricamente humanos e não-humanos. Com ela em mente, segui no desenvolvimento de uma pesquisa que incluía substâncias químicas, formigas, plantas, leis, deputados, entomologistas, entre outros atores (CARDOSO, 2022), confiante sobre a aplicação da TAR ao meu problema. Contudo, como é possível imaginar, não tardou para que os desafios surgissem, de modo que algumas vezes me senti tão perdida quanto o estudante de doutorado do diálogo descrito em “Da Dificuldade de Ser um ANT” (LATOUR, 2012) que, atônito com as questões que essa escolha metodológica fazia emergir, resolve buscar socorro em Bruno Latour. Por vezes voltei a esse diálogo porque, se por um lado, ele me alertava sobre algumas das dificuldades que existem nesse caminho, por outro, me trazia alento, por me mostrar que não era uma tarefa difícil só para mim.
Nessa trajetória de pesquisa outros encontros foram essenciais para que eu encontrasse direções. Entre eles, destaco os dois artigos em que Tommaso Venturini (2010, 2012) nos apresenta o mapeamento de controvérsias como uma versão educacional da TAR. Em meio às orientações, ele não deixa de advertir: essa escolha metodológica não tornará a pesquisa mais fácil, ao contrário, ela ainda será espinhosa, complexa, intrincada. Mas não porque o método complique as coisas, e sim porque as coisas são complicadas por elas mesmas. Neste sentido, o mapeamento de controvérsias só é complexo, porque a vida coletiva também o é. Logo, não poderia ser diferente. Gosto especialmente da analogia que ele faz entre a formação das rochas e a formação do social: assim como as rochas se formam na complexidade do estado magmático, abarcando a coexistência de diversos estados da matéria em constante fluxo, o social também é forjado e fundido em meio a controvérsias, incessantemente construído, desconstruído e reconstruído.
Infelizmente, boa parte da bibliografia de apoio a essa metodologia encontra-se disponível apenas em língua estrangeira, adicionando mais uma camada de dificuldade às pessoas interessadas nessa abordagem. A tradução que escolhemos publicar traz um ensaio mais recente publicado por este autor junto a Anders Munk, como uma amostra do que pode ser encontrado no recente manual publicado por eles em “Controversy Mapping: A Field Guide” (VENTURINI e MUNK, 2021). Com uma narrativa lúdica, os autores brincam com personagens e possíveis desdobramentos de uma controvérsia enquanto elucidam pontos importantes sobre as dinâmicas desse fenômeno. Sua tradução, pensada inicialmente como recurso de uma das aulas ministradas aos estudantes de graduação da Unicamp em meu estágio docente, na disciplina de Ciência, Tecnologia e Sociedade, foi trazida para publicação visando ampliar o acesso a esse material. Com isso, esperamos que este possa ser mais um recurso no auxílio de cartógrafos e cartógrafas que desejem navegar em meio às disputas e tensões que compõem as controvérsias sociotécnicas.
Aproveito para agradecer aos autores, Tommaso Venturini e Anders Munk, e ao Backchannels por terem gentilmente nos autorizado a publicação deste ensaio. O texto original em inglês pode ser acessado integralmente clicando aqui.
O texto que segue foi originalmente publicado na seção Reflections do Backchannels, o blog da Society for Social Studies of Science (4S), em 01/11/2021. Tradução para o português de Jéssica Ferreira Cardoso, Mestre e Doutoranda em Política Científica e Tecnológica (Unicamp), contato: fcardoso.jessica@gmail.com.
Por Tommaso Venturini e Anders Kristian Munk
A análise de controvérsia existe desde a década de 1970 como uma técnica para investigar o papel da ciência e da tecnologia na sociedade, bem como o papel da política e da economia na tecnociência – e, de fato, a impossibilidade de separar os dois. Bem estabelecida nos estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), essa abordagem foi revivida nas duas últimas décadas pelo encontro com métodos digitais e pela maneira como a mídia eletrônica e as plataformas online aumentam a visibilidade das controvérsias e facilitam sua rastreabilidade.
Em um guia de campo recente (Controversy Mapping. A Field Guide. Polity, 2021), examinamos as raízes do mapeamento de controvérsia na teoria ator-rede e métodos digitais; exploramos seu elenco de atores e questões; introduzimos uma série de técnicas quali e quantitativas para a curadoria de registros digitais e não digitais; discutimos como representar debates sociotécnicos; e como intervir neles. Este curto ensaio oferece uma pequena degustação e rápida introdução ao nosso livro, e resume algumas das ideias-chave do guia com uma metáfora embelezada, quase como uma história para dormir.
O Rei sob o Baobá
Um dia, ao entardecer, enquanto os animais se reuniam sob o grande Baobá perto de uma fonte de água, o Rinoceronte se manifestou perguntando ao Leão: “Como você se tornou nosso rei? Quem decidiu isso?” O Leão sorriu cerimoniosamente e respondeu: “Ninguém decidiu. Sou rei porque sou o mais forte e minha força oferece proteção. Essa é a Lei da Savana”. Os animais assentiram, mas a pergunta permaneceu em suas mentes e no dia seguinte, sob o Baobá, o Rinoceronte voltou a falar: “Certo, você tem suas garras, seus dentes e uma juba majestosa. Disso estou de acordo. Mas quem disse que a força deve ser medida por esses atributos? Eu tenho meu chifre e uma pele mais resistente que a sua, por que não devo ser rei?
"Você não está errado, meu amigo", respondeu o Leão com um sorriso malicioso, "e, de fato, por que a força deveria decidir?" Ele fez uma pausa e olhou para os outros animais: “O coelho tem orelhas compridas e pode ouvir o perigo se aproximando. O Macaco é astuto e pode evitar armadilhas e ciladas. Talvez um deles devesse ser rei em vez disso?” Os animais ponderaram suas palavras. “Talvez nós devêssemos ser reis”, disseram as Formigas, “somos bem organizadas e é disso que uma comunidade mais precisa”. “Ou talvez eu devesse ser rei”, disse a Girafa, “tenho o pescoço mais longo e posso ver comida e água de longe”. “Ou talvez eu devesse”, disse o Elefante, “porque eu sou o maior”. “Ou eu”, disse o Guepardo, “pois sou o mais rápido”.
“Todos pontos excelentes”, sorriu o Leão, “e todos eles parecem igualmente válidos para mim. Continuem discutindo e resolvam suas diferenças. No momento em que vocês concordarem sobre meu sucessor (mas em nenhum momento antes), ele ou ela terá minha coroa. Levem o tempo que precisarem!”.
É nesses momentos de controvérsia que o entrelaçamento entre conhecimento e política se torna mais evidente. O Leão foi diretamente inserido no meio de um debate sociotécnico, o que não significa necessariamente uma desvantagem para ele. Em circunstâncias normais, a simples referência às convenções implícitas da ‘Lei da Savana’ resolveria as reivindicações ao trono. Enquanto ninguém questionar como se mede a força, não há necessidade de recorrer a ela. E mesmo quando alguém questionar o consenso, a política não se transforma imediatamente em uma briga. Em vez disso, torna-se uma disputa de reivindicações concorrentes, na qual o Leão astutamente aplica suas táticas protelatórias de perpetuar a incerteza.
Esta é uma dinâmica familiar e que pode ser dividida em três elementos principais, os quais discutiremos com alguns detalhes a seguir.
• Primeiro, é mais fácil introduzir ou interromper um programa de vacinação, uma política energética ou um conjunto de regulamentos sobre privacidade se alguma forma de evidência científica puder ser apresentada a favor ou contra eles e disseminada pela mídia.
• Em segundo lugar, lutar em uma controvérsia não é apenas uma questão de retórica e evidência, mas também de reconfigurar a situação material para ganhar vantagem.
• Por fim, e é um princípio fundamental do mapeamento de controvérsias, não há maneira fácil de decidir de antemão qual conhecimento ou tecnologia influenciará legitimamente o debate – não há como descartar posições ou argumentos antes de investigá-los, incluindo junk news (Venturini, 2019) e infodemias (Simon & Camargo, 2021).
Navegando pela complexidade
Começando pelo último dos elementos listados acima, o mapeamento de controvérsias deve sempre iniciar com a resistência a um impulso comum. No romance de ficção científica Timescape, Gregory Benford (1980) formula sua ‘lei da controvérsia’, afirmando que “a paixão é inversamente proporcional à quantidade de informações reais disponíveis” (ver também MacCoun, 2001). Esta é uma ideia conveniente, que nos permite colocar entre parênteses quaisquer posições que julguemos contraproducentes. De fato, as controvérsias são facilmente interpretadas como sintomas da ‘era da pós-verdade’ (Keyes, 2004), repleta de ‘fake news’ e hipérboles; distante de qualquer coisa que caracterize uma conversa racional e democrática. Certamente, então, as controvérsias não deveriam ser levadas a sério. Este é o impulso ao qual você terá que resistir. Mesmo que as controvérsias possam ser difíceis de amar, você não pode descartá-las ou ignorar suas facetas desagradáveis se aceitar ser seu cartógrafo.
Felizmente, é possível adotar uma visão mais produtiva das controvérsias. O debate dos animais sob o Baobá é um bom exemplo. Aqui está uma situação que não é alimentada por sentimentos feridos ou emoções agitadas, mas pelo tipo de política de conhecimento que caracteriza todas as divergências substanciais. Nenhum acordo pode ser alcançado sobre quais são as perguntas importantes a serem feitas e nenhum especialista singular e autorizado pode definir a disputa. É difícil imaginar uma maneira pela qual mais ‘informações reais’ teriam sufocado as ‘paixões’ e estabelecido a reivindicação ao trono. O rinoceronte não é vítima de seus sentimentos. Pelo contrário, ele de maneira sensata desafia o paradigma de como avaliar a força. Se a força é medida em dentes e garras, então, é claro, o leão deveria ser o rei. Mas para que serve a força? Por que ela é uma qualidade de liderança relevante na savana? O leão alega proteção, mas contra o quê? Outros animais podem invadir de ecossistemas adjacentes, caçadores furtivos podem estar à espreita ou perigos naturais podem alterar as condições de vida. Não é difícil imaginar uma situação onde os talentos organizacionais das formigas, por exemplo, pudessem ser mais úteis, ou onde os guepardos pudessem exibir o valor da velocidade. Pode chegar o dia em que os atributos de outros animais se tornem mais dignos do trono do que os dos leões.
Se for essa a situação, então a controvérsia é inevitável e necessária. É inevitável porque mais informações estão fadadas a provocar mais discussões do que sua resolução. Se a questão fosse tão simples quanto quem tem os maiores dentes, poderíamos razoavelmente esperar mais informações para resolver o debate. Mas a questão não é tão simples – trata-se antes de uma série de reivindicações de força e os graus em que elas podem ou não ser valiosas em uma variedade de cenários. Mais informações certamente produzirão mais questionamentos e atrairão mais análises. Digamos que a notícia de uma inundação em um vale próximo chegue aos animais reunidos sob o baobá e que a história informe como um grupo de formigas organizou brilhantemente o esforço de socorro. A notícia fortalecerá o caso das formigas, através de um cenário que deixa de ser hipotético. Por sua vez, isso atrairá o escrutínio de outros animais. Eles podem questionar: até que ponto o vale vizinho é comparável à sua savana? Inundação realmente representa um risco para eles? Se não, onde está a evidência de que as habilidades das formigas são úteis além do socorro no caso de enchentes? E, a propósito, você já ouviu falar como a chamada ‘eficácia’ delas envolveu uma priorização brutal em que os animais menos úteis (definidos segundo a lógica das formigas) foram deixados para trás? Temos certeza de que esse é o tipo de talento organizacional que queremos valorizar?
A controvérsia também é necessária e, de fato, desejável, pois oferece aos animais uma oportunidade de considerar os prós e os contras de sua organização coletiva. Certamente o leão tentará jogar a seu favor, apostando que os outros animais ficarão atolados em discussões intermináveis, mas há poucas alternativas. A vida na savana é precária e as condições estão sujeitas a mudanças. Faz sentido para os animais sob o baobá manter a mente aberta e manter o diálogo sobre as habilidades e talentos que eles precisam aprimorar – uma conversa que é difícil de manter se o status quo se torna inquestionável ou tomado como certo. As controvérsias desempenham um papel crucial na vida coletiva. Ao contrário do que muitas vezes se acredita, o conflito não é um acidente infeliz na história humana e certamente não será resolvido por qualquer acúmulo progressivo de conhecimento ou proeza tecnológica. As controvérsias não são calamidades a serem evitadas a todo custo; elas representam estágios normais da existência social. Elas não são apenas inevitáveis, mas também podem ser úteis.
Então, pedimos que abracem a controvérsia, mas que esperem algo em troca. O mapeamento de controvérsias como método de pesquisa oferece a possibilidade de revelar a complexidade dos debates sociotécnicos sem se perder neles. Como método de intervenção política, pode produzir clareza e ajuda à navegação. O leão encoraja o debate não para o bem da democracia, mas porque espera que os outros animais permaneçam indecisos. Ele está procurando uma cortina de fumaça: ele quer que nos percamos e provavelmente ele não é o único. Os que negam chifres ou dentes podem aparecer argumentando que rinocerontes ou leões não têm força alguma. Dados falsificados podem ser divulgados, campanhas de difamação realizadas, alianças secretas forjadas e força bruta aplicada. Podemos imaginar como o debate sob o baobá poderia tomar todo tipo de reviravolta menos produtiva. Acusações de especismo poderiam ser lançadas, macacos e girafas se recusando a ouvir qualquer coisa, exceto um viés felino nos argumentos dos guepardos. A questão não é se tais situações podem ser evitadas – elas provavelmente não podem – a questão é como podemos aprender a navegar por elas.
Um emaranhado de conhecimento e poder
Se fôssemos completar a imagem antropomórfica da reunião sob o baobá, não demoraria muito para que os animais começassem a citar as pesquisas mais recentes ou a pedir uma investigação independente para apoiar suas reivindicações. Isso nos permitiria mapear quais evidências e recursos eles mobilizam para apoiar suas posições, em vez de simplesmente pesquisar suas atitudes. Como diz Sergio Sismondo:
Abraçar a democratização epistêmica não significa um barateamento total do conhecimento tecnocientífico no processo. (…) relatos detalhados da construção do conhecimento científico mostram que ele requer infraestrutura, esforço, engenhosidade e estruturas de validação (2017, p.3).
As girafas podem propor que sua capacidade de localizar comida e água à distância é uma habilidade de liderança essencial, mas não conseguir citar um estudo que corrobore esse argumento. Todos os relatórios disponíveis podem sugerir que a savana continuará sendo um lugar de abundância nos próximos anos e que os riscos de secas e fome são insignificantes. O aumento de caçadores invadindo o habitat, por outro lado, dá um momento de glória aos coelhos e suas orelhas compridas. Sua sensibilidade, no entanto, logo é obscurecida pelo fato de que os macacos mantiveram registros meticulosos sobre os tipos de armadilhas que eles removeram ao longo dos anos. Muitos animais podem achar esse argumento convincente e começam a divulgar a pesquisa dos macacos como um fato. A ‘ameaça dos caçadores’ pode se tornar viral nas mídias sociais e rapidamente ser veiculada pelos canais de transmissão.
Está surgindo uma paisagem na qual os macacos ocupam uma posição elevada e as girafas ficam isoladas. Como Steven Shapin e Simon Schaffer explicam em seu livro sobre o nascimento da ciência moderna: “soluções para o problema do conhecimento estão incorporadas em soluções práticas para o problema de ordem social e diferentes soluções práticas para o problema da ordem social encapsulam soluções práticas contrastantes para o problema do conhecimento” (Shapin & Schaffer, 1985, p. 15). Sheila Jasanoff chama esse emaranhado de co-construção da ciência e da ordem social (2004).
Embora este emaranhado de conhecimento e política possa ser óbvio para qualquer pessoa com o mínimo treinamento em estudos de ciência e tecnologia, não há nada óbvio sobre as formas específicas que ele assume. O simples fato de ter um panorama sobre quem está agindo, por quais meios e em relação a quais questões pode ser uma tarefa monumental – ainda mais porque todos esses elementos evoluem com a situação. Digamos que a notícia de uma inundação em um vale próximo chegue aos animais reunidos sob o baobá e que a história informe como um grupo de formigas organizou brilhantemente o esforço de socorro. A notícia fortalecerá o caso das formigas, através de um cenário que deixa de ser hipotético. Por sua vez, isso atrairá o escrutínio de outros animais. Eles podem questionar: até que ponto o vale vizinho é comparável à sua savana? Inundação realmente representa um risco para eles? Se não, onde está a evidência de que as habilidades das formigas são úteis além do socorro no caso de enchentes? E, a propósito, você já ouviu falar como a chamada ‘eficácia’ delas envolveu uma priorização brutal em que os animais menos úteis (definidos segundo a lógica das formigas) foram deixados para trás? Temos certeza de que esse é o tipo de talento organizacional que queremos valorizar?
A configuração material do debate
Não são apenas os eventos naturais que afetam a sorte dos animais, mas também as inovações técnicas. Embora os macacos tenham conseguido definir o problema em torno dos caçadores a seu favor, não há garantia de que suas habilidades continuarão sendo essenciais. Os desenvolvimentos tecnológicos podem nivelar o campo, por exemplo, permitindo que animais sem polegares opositores desmontem armadilhas, erodindo assim a força da posição dos macacos.
Algumas controvérsias são geradas por inovações tecnológicas de forma direta (por exemplo, quando uma nova tecnologia de vigilância aparece no mercado ameaçando a privacidade individual, ou quando os debates sobre saúde pública são alimentados pela introdução de um novo medicamento). No entanto, em muitos outros casos, a influência da tecnociência é mais profunda e tem a ver com a forma como a ciência e a tecnologia nos permitem (mas também nos obrigam) a partilhar a nossa existência coletiva com novos atores. Lembre-se de como o rio próximo entrou na controvérsia e se tornou o aliado mais poderoso das formigas e considere como outros animais poderiam se aliar a esse ator para sua causa, com todos os tipos de consequências desejadas e indesejadas. Um grupo de castores pode intervir e erguer um sistema de diques no vale a montante. Isso diminui o risco de inundações, mas cria uma escassez de água a jusante, o que inesperadamente aumenta a sorte das girafas e seu longo pescoço. É uma consequência inevitável do progresso tecnocientífico que, ao ampliar nosso controle da vida natural e coletiva, também nos conectemos a um elenco cada vez maior e mais diversificado de atores (Beck, 1992; Latour, 1993).
Tais mudanças na configuração material do debate são essenciais para a compreensão das controvérsias. Embora existam muitos métodos testados e comprovados para avaliar as opiniões públicas (por exemplo, pesquisas, referendos, eleições, etc.), o que o mapeamento de controvérsia traz à mesa é a capacidade de avaliar as mudanças no tecido sociotécnico em relação a quais opiniões são formadas e quais reivindicações de conhecimentos adquirem força.
À medida que a controvérsia se desenvolve, alguns atores vão subir e outros vão cair, e, consequentemente, o quadro de atores do cartógrafo deve mudar. De fato, terão que mudar não apenas os nomes nesse quadro, mas também as entidades que esses nomes representam. As formigas antes e depois da enchente não são as mesmas, pois seus talentos são diferentes. Da mesma forma, os atores mudam quando suas alianças e oposições mudam. A dificuldade de defender a própria causa encoraja as girafas a se unirem aos elefantes e apresentar argumentos sobre o valor intrínseco do tamanho. Reunidos sob o lema “quanto maior melhor”, os dois animais se fundem provisoriamente em uma única coalizão, que por sua vez inspira negociações entre os ‘pequenos, mas inteligentes’ macacos e formigas.
Algo semelhante se aplica ao quadro de questões do cartógrafo, que deve ser igualmente passível de mudança. Se a questão é como medir a força física, isso acarreta oportunidades para certos tipos de provas e conhecimentos, mas se a questão diz respeito aos talentos organizacionais, então essas provas e esses especialistas perdem relevância. E assim, acompanhar quais atores são capazes de fazer a diferença em qual questão, como e em que momento, resume o trabalho do mapeador de controvérsias. No caso da controvérsia do Baobá, a seguir temos um exemplo da representação cartográfica que pode resultar desse trabalho.
Referências da nota da tradutora:
CARDOSO, Jéssica Ferreira. Entre seguro e poluente: disputas ontológicas em torno do PFOS e da sulfluramida no Brasil. Dissertação de Mestrado em Política Científica e Tecnológica – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2022.
LATOUR, Bruno. Da Dificuldade de Ser um ANT: Interlúdio na Forma de Diálogo. In: Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Bauru, SP: Edusc, 2012. p. 205–226.
VENTURINI, Tommaso. Diving in magma: how to explore controversies with actor-network theory. Public Understanding of Science, v. 19, n. 3, p. 258–273, maio 2010.
VENTURINI, Tommaso. Building on faults: How to represent controversies with digital methods. Public Understanding of Science, v. 21, n. 7, p. 796-812, outubro 2010.
VENTURINI, Tommaso e MUNK, Anders Kristian. Controversy Mapping: A Field Guide. Cambridge, UK ; Medford, MA, USA: Polity, 2021.
Referências do artigo original:
Beck, Ulrich. 1992. Risk Society: Towards a New Modernity. Thousand Oaks: Sage Publications.
Benford, Gregory. 1980. Timescape. New York: Simon & Schuster.
Jasanoff, Sheila. 2004. States of Knowledge. Edited by Routledge. London.
Keyes, Ralph. 2004. The Post-Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life. New York: St. Martin’s.
Latour, Bruno. 1993. We Have Never Been Modern (Translated by Cathy Porter). Cambridge, Mass: Harvard University Press.
MacCoun, Robert J. 2001. “American Distortion of Dutch Drug Statistics.” Society 38 (3): 23–26.
Shapin, Steven, and Simon Schaffer. 1985. “Leviathan and the Air-Pump. Hobbes, Boyle and the Experimental Life.” Princeton: University Press.
Simon, Felix M., and Chico Q. Camargo. 2021. “Autopsy of a Metaphor: The Origins, Use and Blind Spots of the ‘Infodemic.’” New Media and Society, 1–22.
Sismondo, Sergio. 2017. “Post-Truth?” Social Studies of Science 47 (1): 3–6.
Venturini, Tommaso. 2019. “From Fake to Junk News, the Data Politics of Online Virality.” In Data Politics: Worlds, Subjects, Rights, edited by Didier Bigo, Engin Isin, and Evelyn Ruppert, 123–44. London: Routledge.
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