Por Ana Carlina Spatti*
Convivemos, atualmente, com a recorrência de discursos que conferem à interdisciplinaridade uma qualidade de empoderamento enquanto forma de se produzir conhecimento: uma espécie de “ciência das ciências” (PALMADE, 1979). Essa visão da interdisciplinaridade como palavra de ordem ou lugar-comum pode ter se originado pelo fato de que o eco das discussões sobre interdisciplinaridade aterrissa no Brasil (por volta de 1960) de modo distorcido, e acaba capturado por aqueles que se aventuram ao novo e ao modismo sem reflexão (FAZENDA, 2008).
A referência à interdisciplinaridade como um movimento fundamental da atualidade tem ocorrido, na maioria das vezes, de modo mecanizado, sendo recorrente a afirmação de que essa forma de tratamento é que mais se “encaixa” ao atual sistema de produção de conhecimento. Sob essa lógica, pesquisas de cunho disciplinares têm sido desencorajadas. Professores e alunos se veem amiúde desafiados a “encontrar” a interdisciplinaridade que permeia seus temas de pesquisa, suas metodologias, ou, ainda, seu objeto de estudo.
Pereira e Nascimento (2016), apesar de destacarem estar havendo uma “complementação” (em detrimento de uma simples substituição) da prática da ciência interdisciplinar com relação à disciplinar, se referem a esse processo como um movimento “evolutivo”, atribuindo à interdisciplinaridade um caráter de ascensão. Dizer que a interdisciplinaridade surgiu parte como produto dos desafios que se colocavam na disciplinaridade é fundamentalmente diferente de afirmar que se constitui uma evolução na forma de se fazer conhecimento.
Cria-se, assim, uma representação cognitiva sobre a interdisciplinaridade como sendo uma forma de tratamento superior àquelas essencialmente disciplinares. Na realidade, ambas as formas se oferecem à sociedade de modo coabitável, cada qual contribuindo à sua maneira (GIBBONS et al., 1994). Faz-se imprescindível, por conseguinte, um olhar mais crítico e reflexivo sobre a prática interdisciplinar, assim como o fazem Cardoso et al. (2008, p. 26) ao utilizarem a frase “Interdisciplinaridade: Fácil falar. Fácil fazer?” como título provocativo para discussões mais relativizadas e menos reducionistas. De modo semelhante, Minayo (1994) traz como questionamento: “Interdisciplinaridade: Funcionalidade ou utopia?”.
Ao estabelecer a possibilidade de uma compreensão sociológica e histórica do conhecimento científico, a interdisciplinaridade parece ter atraído uma gama tão grande de estudiosos de diversas disciplinas que, em certos casos, em função dessa diversidade de vozes, suas metas intelectuais, sua finalidade e seu foco parecem estar nebulosos (ou mesmo incoerentes). Se há, de fato, um sentimento agudo de dúvida e desassossego sobre o interdisciplinar, é natural pensar que sua prática acaba sendo, de certo modo, desalinhada.
O diálogo interdisciplinar não é simples como unir os pigmentos vermelho e amarelo na busca pelo laranja. Ele pressupõe a confluência de conhecimentos, a troca entre diferentes olhares e a construção de um produto diferenciado, com várias tonalidades possíveis. Sob essa ótica, a crítica cada vez mais frequente à disciplinaridade parece ser, em partes, injustificada.
*Ana Carolina Spatti é doutoranda em Política Científica e Tecnológica na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA – UNICAMP), graduada em Gestão de Políticas Públicas e Administração (FCA – UNICAMP). Possui trabalhos e projetos desenvolvidos na área de Gestão, com enfoque principal em políticas públicas de saúde, Ensino Superior e relação entre Universidades e Empresas. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8839-8276 Lattes: http://lattes.cnpq.br/2422549895945659
Referências Bibliográficas
CARDOSO, Fernanda Serpa; THIENGO, Angela Maura de Almeida; GONÇALVES, Maria Helena Dias; SILVA, Nilza Ribeiro; RODRIGUES, Carlos Rangel, NÓBREGA, Ana Lúsica; CASTRO, Helena Carla. Interdisciplinaridade: fatos a considerar. Revista Brasileira de Ensino de Ciência e tecnologia, v. 1, n. 1, 2008.
GIBBONS, Michael; LIMOGES, Camille; NOWOTNY, Helga; SCHWARTZMAN, Simon; SCOTT, Peter; TROW, Martin. The New Production of Knowledge: the dynamics of science and research in contemporary societies. SAGE Publications, London, 179 p., 1994.
FAZENDA, Ivani C. Arantes. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. 15. ed. Campinas: Papirus, 2008 (1994).
MINAYO, Maria Cecília de Souza. Interdisciplinaridade: funcionalidade ou utopia? Saúde e Sociedade, v. 3, n. 2, p. 42-63, 1994.
PALMADE, Guy. Interdisciplinaridad e ideologias. Madrid, Narcea. 1979. PEREIRA, Elvio Quirino; NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do. A Interdisciplinaridade nas Universidades Brasileiras: trajetórias e desafios. Redes, n. 1, v. 21, p. 209-232. 2016.
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