URETA, Sebastián; FLORES, Patricio. Worlds of Gray and Green: Mineral Extraction as Ecological Practice. University of California Press, 2022.
Essencialmente, a mineração é a atividade de separar uma substância valorada economicamente em determinada circunstância de todo o resto que a circunda, ou seja, tudo o que não é o minério de interesse é transformado em rejeito. Em meados de setembro de 2023, o Brasil contabilizava 926 barragens de rejeitos de mineração cadastrados no Sistema Integrado de Gestão de Barragens de Mineração (SIGBM). Desse total, 345 estão no estado de Minas Gerais, e 55 estão categorizadas como de alto risco. Para adaptar a frase de Gudynas, “No extrativismo, nada é produzido, existe apenas uma extração” (Gudynas) — no extrativismo, apenas rejeito é produzido. Mas apenas aparentemente: existem outras diversas formas de vida que florescem inadvertidamente nas ruínas produzidas pela extração.
Esse é um dos temas abordados pelo livro de Sebastián Ureta e Patricio Flores. Publicado em 2022 pela University of California Press, o livro ao mesmo tempo em que trata de circunstâncias bastante particulares, pode ser lido como uma analogia: é situado nas dinâmicas observadas pelos autores em campo e nas particularidades daquela situação, mas também representa de forma bastante abrangente as relações criadas a partir de práticas de mineração em outros lugares da América Latina. E essa não é a única contradição intencionalmente apresentada neste livro.
Os autores se basearam em pesquisa etnográfica realizada na mina de cobre El Teniente, ou, mais especificamente, na barragem de rejeitos dessa mina. El Teniente, localizada a cerca de 100 km de Santiago e considerada a maior mina subterrânea do mundo, é propriedade da Corporación Nacional del Cobre (CODELCO), uma empresa estatal fundada em 1976. Após a extração e o refinamento do minério bruto, cerca de 99% do material é categorizado como resíduo, e então percorre 85 km em um canal de concreto até a lagoa de rejeitos, nomeada Embalse Carén. Esse reservatório de proporções monstruosas é bastante similar a qualquer outra barragem de rejeitos de mineração: é formada em grande parte por uma lama cinzenta, em algumas partes disfarçada por poças de água esverdeada na superfície e bancos de areia que se assemelham a praias, e de forma geral transmite uma impressão de completa ausência de vida. À jusante da barragem, porém, os autores descrevem um cenário antagônico: um vale em que abundam áreas verdes, de florestas ou áreas cultivadas, e por onde serpenteia o rio que sai da barragem de rejeitos. Esse cenário, afirmam os autores, não existe apesar do cenário de poluição e destruição acima da barragem, mas justamente por causa dele.
O objetivo do livro é justamente mergulhar nas contradições do Embalse Carén para explorar a possibilidade de pensar a extração de outra forma. Longe de ser condescendente com uma forma de destruição provocada pela atividade extrativista, os autores olham para além da poluição e da supressão de ecologias para pensar ao mesmo tempo na ruptura e no surgimento de formas de existência. Nas palavras dos autores, “There was damage, for sure. But also, there was life. Life within extraction.” (p. 10). Fortemente inspirada por autoras como Anna Tsing e Donna Haraway, a escrita é uma construção que transpassa o campo das Humanidades Ambientais e os ESCT (Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia) para ‘ficar com o problema’ dos rejeitos e pensar formas de existir entre as ruínas.
A barragem de rejeitos e seus mundos cinza e verde que nos são apresentados funcionam como uma epítome do Antropoceno: é o resultado de um desenvolvimento tecnológico impulsionado pela forte demanda de eletrificação, no século XX, e construída com a intenção de conter o material sem valor econômico por um período indefinido. É mais uma cicatriz na superfície do planeta que armazena camadas que testemunham o passar dos anos e são supostamente dóceis e imutáveis, tornadas um ‘espaço de não-vida’ — o que, como os autores descrevem, não é verdade.
Por meio de diversas visitas espaçadas ao centro de gerenciamento da barragem, com entrevistas aos funcionários da empresa, bem como visitas às propriedades abaixo da barragem (o que é chamado de ‘patchy ethnography’, ou uma etnografia de remendos), os autores descrevem uma série de relações improváveis que surgem nesse cenário de aparente esterilidade. O resíduo inicialmente inerte é habitado por algas e carpas; o córrego Carén, agora com a vazão regularizada pela barragem e seus mecanismos de tratamento de água, permite a agricultura e pecuária em um vale historicamente marcado pela seca. Mas todas essas formas de vida coexistem com a toxicidade e os riscos de estar próximo a um volume massivo de lama contido pela barragem.
Os autores narram, dentre diversas outras situações, a criação de uma fazenda experimental pela CODELCO localizada logo abaixo da barragem, às margens do rio Carén, e que seria abastecida pela água do reservatório de rejeitos liberada após um tratamento. A empresa estava engajada em provar que uma mineração sustentável, bem como uma ‘coexistência feliz’ entre comunidade e mineração são possíveis, e que isso seria garantido pela segurança da água fornecida após o tratamento. A aposta era que a água garantida pela vazão estável controlada pela barragem poderia ser usada no vale à jusante sem nenhum efeito negativo à saúde humana ou quaisquer formas de vida. Esse cenário de fato permitiu a manutenção da agricultura e criação de animais na região, mas o que estudos mostraram alguns anos mais tarde foi que o medo latente na comunidade — a contaminação dessa água pelas atividades da CODELCO — era justificado.
A fazenda experimental, idealizada para ser uma fonte de conhecimento científico pela demonstração direta dos efeitos no local, tornou-se um centro de controvérsias produzidas por fatos científicos, declarações dos executivos da CODELCO, legislação e pela opinião pública. Não apenas a fazenda, mas todo o projeto contém estratégias de convencimento da comunidade sobre os benefícios trazidos pelo empreendimento, o “orgullo de todos”: “Since its very beginning, the mine has focused not only on the production of copper, but also on the management of local populations.” (p.9).
Para compreender as intrincadas relações entre formas de existência surgidas a partir do estabelecimento da barragem, os autores lançam mão do conceito de geosimbiose. Enquanto a simbiose é comumente empregada para designar uma conexão entre organismos de diferentes espécies, a geosimbiose se refere à uma relação entre substâncias minerais e organismos, em que a existência e proliferação de um afeta a existência e proliferação do outro. Dado que os minerais afetam e de fato compõem a maior parte das estruturas dos indivíduos, como descrito pelos ciclos biogeoquímicos, essas entidades ‘não vivas’ também ocupam um papel crucial na existência da vida. Um exemplo apresentado no livro é o das bactérias que podem se associar a determinadas rochas, tornadas expostas ao ar e umidade pela atividade antrópica, e provocam com isso o fenômeno conhecido como drenagem ácida de mina, ou seja, a liberação de um líquido ácido e rico em metais pesados, reconhecidamente um dos principais problemas ambientais associados à mineração.
Essas relações geosimbióticas podem acontecer de múltiplas maneiras: desde uma relação mutualística, em que todas as entidades são beneficiadas, até relações de parasitismo ou até mesmo tóxicas. A geosimbiose tóxica, para os autores, é uma associação entre entidades minerais e biológicas que produz um dano permanente, ou mesmo a morte, do primeiro (p.13), apesar de produzir benefícios marginais ou algum alívio temporário. São nesses termos que a possibilidade de agricultura abaixo da barragem da CODELCO é descrita: é uma agricultura mantida por geosimbioses possivelmente tóxicas. São modos de vida que de alguma forma se beneficiam daquele lugar, e conseguem existir, porém sofrem severas consequências destrutivas. Relações simbióticas, porém tóxicas: Os efeitos deletérios advém não apesar da geosimbiose, mas justamente por causa dela.
Mais à jusante, a água do córrego Carén foi adquirida — pois no Chile os recursos hídricos são propriedade privada — por uma hidrelétrica. A empresa responsável sabe que a probabilidade da água estar contaminada é alta, mas isso não interfere na geração de energia. Por outro lado, os agricultores que vivem à margem do córrego sabem que a água é privada, e mesmo assim a utilizam. A empresa não presta queixas, já que seria responsabilizada pela má qualidade da água; a comunidade vizinha não reclama da qualidade da água, pois seria processada por usurpação de um bem privado. Assim funciona uma agricultura parasítica, já que a seca os obriga a consumir uma água contaminada, e esse consumo só é possível justamente por ela estar contaminada. Um exemplo claro de ‘alternativas infernais’ (p. 87).
Esse livro é sobre uma mina de cobre no interior do Chile, a comunidade e as ecologias que coexistem com a barragem de rejeitos e suas toxicidades, e uma história particular do país envolvendo a ditadura e privatizações. Mas é também sobre diversas outras cidades da América Latina, a intrincada relação entre tecnologia e política, e o cenário de destruição e abundância de um modelo de existir no mundo. O livro é, essencialmente, um mergulho nas múltiplas camadas do que os autores chamam de residualismo.
Uma lógica residualista, nas palavras dos autores, é “a production logic in which valued minerals are — in material terms — only a side effect of the production and management of colossal amounts of mineral residues, mostly tailings” (p. 26). O residualismo, a produção massiva de rejeitos, é a espinha dorsal da produção contemporânea de cobre e diversos outros minérios, bem como de uma forma de sustentabilidade dependente da transição energética. Para os autores, o cenário do Embalse Carén pode nos dizer muito sobre o futuro: de certa forma, é um lugar onde nosso futuro já aconteceu. E é um cenário em que respostas prontas como remediação ou recuperação não funcionam, já que o problema não está contido na mina El Teniente, mas se desvela por todo um histórico de colonização e violência no território e para além, num cenário de colapso climático planetário.
Associações tóxicas, contraditórias e constantes com substâncias químicas antropogênicas não estão em um cenário de desastre próximo, mas um que já aconteceu e acontece diariamente em Carén e em muitos outros mundos. Mundos onde múltiplos seres conseguem precariamente se entranhar de maneira vital com os produtos (ou resíduos) da atividade antrópica. O problema do monstruoso acúmulo de resíduos vai ficar ali, e por muito tempo. Nos resta aprender a parasitar esses mundos da maneira mais cuidadosa possível.
Palavras-chave: mineração; ecologia; geosimbioses; resíduos; Flores; Ureta
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