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Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia

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As ciências sociais no respirador: o que a Rede Orgânica Periférica de Olinda pode ensinar ao Minist

Atualizado: 12 de jan. de 2023

Professora Doutora Catarina Morawska
Universidade Federal de São Carlos
morawska-vianna@ufscar.br 

Nas últimas semanas tem havido uma intensificação na produção de cientistas sociais na tentativa de reafirmar a relevância de sua área de conhecimento para o enfrentamento da crise sanitária atual. Trata-se de um esforço feito em caráter emergencial a partir de formatos mais acessíveis, como pequenos comentários sobre a relação da pandemia com temas de sua especialidade – religião, economia, educação –, ou mesmo podcasts com lideranças vivendo os efeitos mais extremos da pandemia em seus bairros e comunidades.[i] Se as áreas biomédicas são mobilizadas para o tratamento direto dos corpos atingidos pelo vírus Sars-Cov-2 e a produção emergencial de “tecnologias em saúde”, como equipamentos e vacinas, as ciências humanas se oferecem a dar respostas transversais à pandemia, isto é, apontar os efeitos da Covid-19 no corpo social e alargar a nossa imaginação sobre um possível mundo pós-pandemia.

E é justamente como transversais que as ciências sociais foram recentemente lembradas em portaria do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) de 19/03/2020, instituindo como prioritários entre 2020 a 2023 os projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovações voltados para cinco “áreas de Tecnologias”, abaixo elencadas:

I – Tecnologias Estratégicas, que envolvem questões de soberania nacional, como tecnologias espacial, nuclear, cibernética, de segurança pública e fronteira;

II – Tecnologias Habilitadoras, que buscam a inovação em produtos nas áreas de inteligência artificial, internet das coisas, materiais avançados, biotecnologia e nanotecnologia;

III – Tecnologias de Produção, voltadas ao aumento da competitividade e produtividade nos setores da indústria, agronegócio, comunicações, infraestrutura e serviços;

IV – Tecnologias para Desenvolvimento Sustentável, que estimulam a criação de produtos relacionados a energias renováveis, bioeconomia, tratamento e reciclagem de resíduos sólidos, tratamento de poluição, bem como monitoramento, prevenção e recuperação de desastres naturais e ambientais;

V – Tecnologias para Qualidade de Vida, que desenvolvem produtos e serviços de saúde, saneamento básico, segurança hídrica e tecnologias assistivas. [ii]

Note-se o foco do MCTIC na ideia de desenvolvimento de “produtos e serviços”. O pressuposto é que para qualquer problema, seja soberania nacional, seja a melhoria da qualidade de vida, a solução é sempre a mesma: é preciso fazer mercado. Como se sabe, as ciências sociais tradicionalmente se estabeleceram como área de conhecimento especializada na compreensão de fenômenos sociais, incluindo aí o estudo do imbricamento da economia com outras dimensões da vida social (Polanyi, 1945). Nos estudos de ciência, tecnologia e sociedade (CTS) ganhou força a proposta de Michel Callon (1998) de investigar como modelos econômicos moldam mercados, isto é, como modelos científicos da área de Economia são perfomatizados em tecnologias e regulamentações que acabam por estabelecer os termos em que os mercados operam. Ciência, Empresa e Estado compõem um amálgama do qual emergem mercados particulares, fenômeno que se pode esperar como resultado da portaria do MCTIC e que, portanto, poderia se tornar objeto de interesse de uma ampla gama de pesquisas em CTS. Interessa-nos menos criar e participar de mercados do que descrever como eles tomam vida.

O completo silêncio sobre as ciências sociais na primeira versão da portaria do MCTIC se explica em parte pela falta de disposição ou vocação dos cientistas sociais em criar mercados, e portanto em servir à agenda do ministério, e em parte pelo contexto político em que o governo federal manifesta a opinião, desde o início de 2019, que o apoio à área é desperdício do dinheiro dos contribuintes.[iii] Contudo, após pressão de diversas entidades da comunidade científica, as ciências humanas apareceriam na portaria alguns dias depois como um adendo, abrindo a possibilidade de serem também “considerados prioritários, diante de sua característica essencial e transversal, os projetos de pesquisa básica, humanidades e ciências sociais que contribuam para o desenvolvimento das áreas definidas nos incisos I a V do caput”. (Cf. Portaria MCTIC 1.329 de 27 de março de 2020, grifo adicionado). Em outras palavras, as pesquisas em ciências sociais podem até entrar no rol das prioritárias, desde que transversalmente contribuam para as áreas tecnológicas eleitas pelo governo para se fazer mercado.

Considerando que a portaria estabelece que tais áreas prioritárias devem ser observadas nos editais de outras unidades de pesquisa e órgãos que integram a estrutura organizacional do MCTIC, é de se esperar que haja nos próximos quatro anos uma enorme diminuição na alocação recursos orçamentários e financeiros para as ciências sociais. Tomando de empréstimo uma metáfora atualmente corrente, pode-se dizer que, sem recursos, as ciências sociais precisarão em breve entrar no respirador.

A visão do MCTIC nos coloca diante de uma situação tal que, para o enfrentamento de uma pandemia, não se considera prioritário financiar pesquisas que pensem os efeitos da Covid-19 no corpo social, apenas pesquisas aplicadas que possam agregar valor a algum produto ou serviço pensado como “tecnologia em saúde”. É, evidentemente, indiscutível a importância de se destinar recursos ao desenvolvimento de vacinas e respiradores. Mas será mesmo que as ciências sociais, como prática de conhecimento, não tem nenhuma contribuição a dar num momento tão crítico como esse, para além de um papel transversal às tecnologias em saúde?

É difícil não notar, como cientistas sociais, as soluções criativas de lideranças comunitárias no enfrentamento da Covid-19 em seus bairros. Já acostumados com a negligência estatal, os moradores das periferias urbanas sabem que não podem contar com o poder público para uma resposta consistente e sistemática que leve em consideração a sua realidade. Como disse recentemente Mestre Genivaldo Basílio, do grupo Boi Mandingueiro da Mata do Ronca, um dos altos que fazem divisa entre Recife e Olinda: “somos nós do movimento popular que sempre temos que consertar os problemas causados pelo sistema”. O Boi Mandingueiro é um dos sete grupos comunitários que fazem parte da Rede Orgânica Periférica de Olinda,[iv] criada em março deste ano na urgência da fome e do contágio da Covid-19, que crescem exponencialmente.[v] Sete grupos atuantes em doze comunidades com cerca de cem mil habitantes, em sua grande maioria trabalhadores informais que têm tido dificuldade em receber o auxílio emergencial anunciado pelo governo e, portanto, em seguir as medidas de isolamento social.

Menciono a Rede Orgânica Periférica de Olinda porque creio que eles têm muito a ensinar aos burocratas do MCTIC sobre como as áreas tecnológicas podem se colocar a serviço da população, elas sim transversais às ciências sociais na produção de dados sociais, sanitários e econômicos que possam ajudar no combate a Covid-19. Uma espécie de força-tarefa de cientistas sociais que não apenas fale sobre o mundo, mas com ele. Compondo, como defende Isabelle Stengers (2015), com experimentações já em curso conduzidas como resposta à implacável Gaia, que se mostra na forma de desastres climáticos e pandemias globais.[vi] Nesse sentido, mais prioritário do que fazer mercado é a possível aliança entre movimentos populares, ciências sociais e áreas tecnológicas, de modo a embasar políticas informadas por dados que importam para nutrir a vida nesses territórios periféricos.


As mãos da negligência política – Boi Mandingueiro Rede Orgânica Periférica de Olinda [Direitos reservados ao autor]

Essa é a proposta da Rede Orgânica, cujos grupos há tempos apontam para a discrepância dos dados sobre violência produzidos por órgãos de segurança pública e a incidência dos casos monitorados por aqueles que vivem nos bairros (Santos, 2017; Morawska, 2018). O mesmo ocorre agora na pandemia, em que os dados apresentados pela prefeitura de Olinda causam perplexidade pela evidente subnotificação. Circulam entre os grupos da Rede dezenas de mensagens diárias comunicando quem, em que rua e em qual casa está com sintomas de Covid-19. Circulam também outras histórias ainda mais chocantes, como a de um senhor de 65 anos, morador do Marezão, região na beira do rio Beberibe, que estava com sintomas de Covid-19 e começou a sentir falta de ar. A família chamou o SAMU, que não apareceu, porque os socorristas não entram nos becos do bairro. Resolveram então colocá-lo num carrinho de mão para levá-lo à avenida principal para esperar pela ambulância. Morreu esperando. As imagens enviadas são de uma tristeza enorme. De máscara para proteger os familiares, seu corpo sem vida se vê encolhido dentro do carrinho. Isso foi no dia 24 de abril de 2020, e para mim será sempre a imagem da pandemia global da Covid-19 e seus efeitos desiguais nos corpos periféricos.

Diante de situações intoleráveis como essa, a Rede Orgânica decidiu que seria importante produzir dados que pudessem contribuir para o enfrentamento da Covid-19 em seus bairros. Mais uma vez, “o movimento popular consertando os problemas causados pelo sistema”. O papel das antropólogas, que até então estavam no apoio burocrático da Rede Orgânica no enfrentamento da pandemia, passou a ser a elaboração de um projeto de pesquisa que envolvesse pesquisadoras e pesquisadores locais, dentro da comunidade, e especialistas em tecnologia da informação, de modo a desenvolver uma “plataforma digital com dados comunitários”.[vii] O desafio era produzir um mapa interativo que combinasse os dados oficiais da Covid-19 e aqueles produzidos na escala da comunidade por moradores, propriamente treinados nos fundamentos de pesquisa em ciências sociais, abordando os efeitos sanitários, sociais e econômicos da pandemia nos bairros. Com isso se poderia ter com mais clareza a ideia da demanda dos serviços de saúde, da necessidade de benefícios sociais e de ameaças como os alagamentos e quedas de barreiras recorrentes na época de chuva, que este ano coincidiu com a pandemia do coronavírus.

O papel das cientistas sociais era apoiar a criação do que Bryan Pfaffenberger (1992) chama de “sistema sociotécnico”, que neste caso uniria três tipos de práticas de conhecimento: do movimento popular, das ciências sociais e da tecnologia da informação. Com recursos escassos de doações voltadas a cestas básicas, a iniciativa ainda não seguiu adiante. Mas o que a experiência da Rede Orgânica Periférica de Olinda pode ensinar aos burocratas do MCTIC é que as ciências sociais são uma área de pesquisa essencial, não para a formação de mercados, mas de sistemas sociotécnicos que submetam as áreas tecnológicas à produção de vida em territórios periféricos. O foco do MCTIC na “tripla hélice” – Ciência, Empresa, Estado -, tem como medida de sucesso apenas o “desenvolvimento econômico”, expresso pelo índice Bovespa e por dados macroeconômicos que escondem uma enorme concentração de renda. Trata-se de uma visão extremamente pobre de nação, pautada por um modelo econômico ortodoxo que, como a atual pandemia da Covid-19 tem comprovado, está completamente ultrapassado. Uma visão, portanto, inadequada para pautar as pesquisas científicas em um dos países mais desiguais do mundo. O desenvolvimento das ciências em sua pluralidade, não limitadas apenas à criação de produtos e serviços, pode abrir espaço para que tecnologias das mais diversas se coloquem transversalmente a serviço do bem estar coletivo.

Referências

CALLON, Michel. Introduction: The Embeddedness of Economic Markets in Economics. The Sociological Review, Vol.46(S1): 1-57, 1998.

IMUÊ – Instituto Mulheres e Economia (Org.). I Fórum imuê: a abordagem etnográfica e o desafio das composições coletivas. São Carlos: imuê, 2019.

MORAWSKA, Catarina. Luto e memória das mães da saudade de Peixinhos. In: Ana Claudia Marques; Natacha Simei Leal. (Org.). Alquimias do Parentesco: casas, gentes, papeis, territórios. Rio de Janeiro: Gramma; Terceiro Nome, 2018, p. 335-376.

MORAWSKA, Catarina; MANTOVANELLI, Thais; RIBEIRO, Magda; PERIN, Vanessa; SANTOS, Alessandra Regina dos; FERRAZ DE LIMA, Jacqueline; COSTA, Pedro H. Mourthé de Araújo. “Antropologia e engajamentos nas fronteiras do capitalismo: a experimentação etnográfica como aliança técnico-política”. In: Catarina Morawska (org). Engajamentos Coletivos nas Fronteiras do Capitalismo. (no prelo).

PFAFFENBERGER, Bryan. Social Anthropology of Technology. Annual Review of Anthropology. 21: 491-516, 1992.

POLANYI, Karl. ​Origins of our time: the great transformation. London: V. Gollancz, 1945.

SANTOS, Elisângela Maranhão dos. Mães da Saudade de Pernambuco: resistência e luta pela vida. Olinda: GCASC, 2017.

STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes. Resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosaq Naif, 2015.

 

[i] Ver, por exemplo, o “Boletim Cientistas Sociais e o Coronavírus”, uma iniciativa da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Disponível em: <http://anpocs.org/index.php/publicacoes-sp-2056165036/boletim-cientistas-sociais> Acesso em 25 de maio de 2020.

[ii] Resumo das informações contidas na Portaria 1122/2020 do MCTIC. Disponível em:

[iv] Além do Boi Mandingueiro/Grupo de Teatro Atual, a Rede é formada pelo Grupo Comunidade Assumindo suas Crianças, Biblioteca Nascedouro de Peixinhos, Biblioteca Solar de Ler/Centro de Cultura Luiz Freire, Coletivo Sempre Vivas, Grupo Sol, Projeto Feneaalto. Ver as ações em: https://www.facebook.com/redeorganicaperifericaolinda e https://www.instagram.com/redeorganicaperifericaolinda/?hl=pt-br .

[v] Em 27 de maio de 2020, Pernambuco contabilizava 9,6% dos óbitos por Covid-19 no Brasil. Cf. https://dados.seplag.pe.gov.br/apps/corona.html . Acesso em 28 de maio de 2020.

[vi] Para uma discussão sobre como Stengers pensa as possibilidades de atuação da ciência como parte de experimentações em curso no mundo, ver Morawska et al. (no prelo).

[vii] Trata-se de antropólogas do Instituto Mulheres e Economia (imuê), cujas práticas de conhecimento se fazem na aliança com movimentos populares. Para uma reflexão sobre essa abordagem, ver imuê (2019). Disponível em: https://institutoimue.org/category/publicacoes/

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