Flora Villas Carvalho*
O anonimato digital vem sendo cada vez mais analisado por diversas áreas do conhecimento por figurar como elemento tensionado que, se por um lado reinventa formas de violência, por outro, rearranja possibilidades de resistências ciberfeministas e ciberativistas. Intrinsecamente marcado pelas ambiguidades de suas relações com os conceitos de privacidade, liberdade de expressão e segurança de dados, o anonimato vem se inserindo em importantes disputas políticas no Brasil ao tornar difusas as noções de individualidade e identidade reconhecível, rastreável e, portanto, passível de controle pelas instituições do Estado, bem como das empresas de informação e comunicação.
O anonimato é definido de diferentes formas, mas em geral é tido como “condição na qual o nome de uma pessoa é desconhecido. Mais ainda, a pessoa é não-identificável, não-localizável e não-alcançável” (TASHIRO, 2015). Desta forma, as/os ciberativistas vêm discutindo a diminuição da circulação e transmissão de dados pessoais na rede através das tecnologias de criptografia. Como aponta Haraway, o ciborgue “mapeia nossa realidade social e corporal” (HARAWAY, 1985) e, nesse sentido, é possível perceber como a internet ciborgue também funciona através dessa constante construção de cartografias vigiadas dos internautas, de seus corpos e dados. Neste sentido, como escreve Silveira (2009), o anonimato seria como uma “falha programada” destes dois sistemas sociotécnicos, sendo ele irrastreável e incerto, ou seja, oposto ao controle, mas também possibilitado pela mesma arquitetura de rede que cria a vigilância no ciberespaço. De toda forma, é exatamente por esta posição de ambiguidade incômoda que o anonimato se mostra como arma potente.
Historicamente, a noção jurídica de direito ao anonimato está intimamente ligada ao direito à privacidade, por sua vez garantido no Brasil pela Constituição Federal de 1988 e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Portanto, a privacidade e o controle das informações que se desejou não divulgar a respeito de si aparecem como direitos fundamentais do cidadão, sendo ferramentas essenciais à autonomia do indivíduo.
Pensar as questões jurídicas que circundam as possibilidades de navegações digitais anônimas no país é também lidar com uma série de problemáticas. A primeira delas é a correlação entre anonimato e liberdade de expressão, paradoxalmente interligados na Constituição Brasileira, na qual a liberdade de expressão é garantida em lei, mas o anonimato é vedado. Isto se explica, principalmente, porque a comunicação anônima dificulta a regulação dentro da internet e não permite a responsabilização daquele que cria, expõe ou compartilha uma informação. Cria-se uma espécie valorização da liberdade de expressão, mas de concomitante pânico moral quando ela é feita de forma irrastreável. Além disso, é também nessa chave que boa parte dos discursos de ódio no Brasil, dentro e fora da internet, tem operado sob a premissa de que falas e práticas desrespeitosas e/ou agressivas contra minorias seriam formas de “liberdade de expressão”.
Ao lidarmos com crimes cibernéticos anônimos, ofensas à moral e à própria vida de pessoas na internet, também tratamos de uma série de cibercrimes que atingem grupos minorizados, principalmente mulheres e LGBTs. No entanto, em um país em que a polícia não traz segurança e as vítimas mulheres e LGBTs são responsabilizadas pelas agressões que sofrem, que outra forma segura de denunciar senão o anonimato?
Simultaneamente às discussões nos âmbitos jurídicos, a agenda ciberativista também vem desenvolvendo, nas últimas décadas, a militância a respeito da comunicação anônima e da privacidade de dados. Para tal, vêm construindo possibilidades de tecnologias de anonimato nas redes cibernéticas como fortes sistemas criptográficos. Pensam a internet, portanto, como potência para gerar possibilidades de navegação, comunicação e ativismos menos vigiadas, mais autônomas e protegidas.
Além da criptografia, outro elemento importante dentro da militância hacktivista é o TOR, servidor de navegação anônima e irrastreável, que se configura como plataforma para a organização de movimentos sociais, garantia de “direitos humanos” e de direitos de grupos minorizados.
Contudo, também vemos perspectivas como a de Lawrence Lessig, expoente nas discussões das possibilidades e ambiguidades da internet, o qual sugere que o ciberespaço, muitas vezes visto como espaço descentralizado e libertário, seria, na verdade, uma plataforma com potencial para ser mais restritiva do que as regulações estatais, se bem regulado. Na perspectiva “pró-controle” de Lessig, os chamados “protocolos” constituem mecanismo único de regulação (LESSIG, 2006) e poderiam ser apropriados pelo Direito para utilizá-las em prol de um maior controle dos indivíduos.
Os “protocolos” são parte fundamental da Arquitetura da Internet e compõem conjuntos de regras e convenções dadas por códigos (algoritmos) que delimitam as interações e os comportamentos na rede. Esta Arquitetura é composta também pela “topologia de rede”, responsável por condicionar os acessos que os internautas têm na internet (TASHIRO, 2015) e, inclusive, por identificar, mapear e armazenar estes acessos e de onde eles vêm. Todo esse sistema que compõe a rede cibernética é defendido por Ugarte (2008) como uma rede descentralizada, mas não horizontal. Isto porque na internet continuam operando sistemas verticais e coloniais do “mundo off-line” e também porque ela é baseada no “sistema de localização de nomes de domínios extremamente hierarquizado, o Domain Name System” (SILVEIRA, 2009), controlado por monopólios de grandes operadoras de comunicação. Esta mesma estrutura parece, portanto, propícia tanto ao controle quanto ao não-controle.
Concomitante a essas disputas políticas, foi lançado, em 2015, um relatório redigido pelo Alto Comissário da ONU, defendendo que “a criptografia e o anonimato permitem que os indivíduos exerçam seus direitos à liberdade de opinião e expressão na era digital” (KALIA, 2016), destacando ainda esses recursos como vital para compartilhamento de informações menos controlado e garantia dos direitos humanos.
Para mulheres, o anonimato tensiona também, de forma ainda mais acentuada, as estruturas (machistas) de poder, fazendo emergir destas tensões tanto riscos quanto resistências. Sendo assim, se por um lado as tecnologias de ocultação de identidades vêm servindo enquanto meio para assediar, perseguir e violentar mulheres e suas privacidades, por outro lado, são estas mesmas ferramentas que podem ser utilizadas para a efetivação de militâncias e denúncias seguras. Questionadas a respeito destas questões em entrevistas à Coding Rights, Charô Nunes, do Blogueiras Negras, e a jornalista Ana Freitas relatam como, mesmo sofrendo diversas formas de ataques virtuais vindos de perfis anônimos, defendem veementemente que a causa dessas agressões nunca foi o anonimato (Coding Rights, 2016; Freitas, 2016). Argumentam que as violências praticadas no ciberespaço contra mulheres são, sim, reconfiguradas frente às especificidades que este tipo de espaço proporciona, mas são também reflexos das violências estruturais que historicamente moldam as existências de mulheres no mundo fora da internet, especialmente de mulheres negras, pobres, transsexuais e lésbicas.
Portanto, ainda que o anonimato de fato esteja envolto em uma série de tensões ambíguas e paradoxais, é preciso aprofundar nas discussões de seus usos para possíveis resistências, tal como nas possibilidades de construção de redes anônimas responsáveis e politicamente posicionadas em favor de minorias políticas.
*Flora Villas Carvalho é associada da Esocite.Br (Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias). É membro do Grupo de Pesquisa Gênero e Sexualidade e do Laboratório de Antropologia das Controvérsias Sociotécnicas, ambos do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Como aluna do curso de Antropologia da referida universidade, tem pesquisado sobre a temática do anonimato digital na sua interface com questões de gênero nos últimos dois anos, tanto em uma Iniciação Científica quanto em sua recém-defendida monografia de graduação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CODING RIGHTS. Internet e a voz das mulheres negras. 2016. Disponível em: https://antivigilancia.org/pt/2016/09/entrevista-charo-nunes/ Acesso em: 01/09/2018
FREITAS, Ana. Não há democracia sem garantia de anonimato na internet. 2016. Disponível em: https://antivigilancia.org/pt/2016/09/nao-ha-democracia-sem-anonimato/ Acesso em: 01/09/2018
HARAWAY, Donna Jeanne. O manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. [1985] In: TADEU, Tomaz. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2ª ed, Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p. 33-119.
KALIA, Amul. A criptografia é uma questão de direitos humanos: sua privacidade e liberdade de expressão dependem dela. 2016. Disponível em: http://lerosincopado.blogspot.com/2016/12/a-criptografia-e-uma-questao-de.html Acesso em: 20/01/2019
LESSIG, Lawrence. Code: Version 2.0. 1ª ed. New York: Basic Books, 2006.
SILVEIRA, Sérgio Amadeu da. Redes cibernéticas e tecnologias do anonimato. Comunicação & Sociedade, v. 30, n. 51, p. 113-134, 2009.
TASHIRO, William. Direito ao anonimato na internet. 2015. Disponível em: https://williamtashiro.jusbrasil.com.br/artigos/221215593/direito-ao-anonimato-na-internet Acesso em: 20/01/2019
UGARTE, David de. O poder das redes. 1ªedição. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2008.
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